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segunda-feira, 12 de setembro de 2016

Pai dos Pobres: A Vida Espiritual de São Pio X

Por: Mark Fellows (CFN - Catholic Family News), 3 de setembro de 2016
Tradução: Traditio Catholicae
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Dos arquivos do CFN
3 de setembro de 2016, Festa de São Pio X

"Nasci pobre, vivi na pobreza e desejo morrer pobre." - último desejo e testamento do Papa São Pio X. 

Ele era como sua mãe, de modo que os sentimentos eram profundos no jovem Giuseppe Sarto. Rápido com um sorriso e com um punho, ele estava igualmente disposto à amizade e à luta. O pai queria a energia muscular do seu segundo filho aplicada em casa para o benefício da pobre e grande família católica dos Sarto. Mas Giuseppe já tinha decidido tornar-se padre.

Inteligente e piedoso, ele foi enviado menino para o seminário menor em Castelfranco. Custou muito para pagar hospedagem e alimentação na escola, de modo que Giuseppe levantava de madrugada para suas 10 milhas (aproximadamente 16 quilômetros) diárias de ida e volta a pé para a escola. Ele amarrava um pequeno lanche em seu peito, atava os sapatos um no outro e pendurava-os por cima do ombro para não desgastar. Ele normalmente caminhava descalço para a escola e quando voltava para casa à noite, estudava Latim.

Quando seus anos em Castelfranco terminaram, ele e dezenas de outros garotos fizeram os exames do seminário diocesano de Treviso. Sarto pontuou em primeiro em todas as matérias e recebeu uma bolsa de estudos para o Seminário de Pádua. Ele terminou seu primeiro trimestre em primeiro lugar entre cinquenta e seis alunos. Durante o curso de seus estudos no seminário, ele recebeu o seguinte elogio: Disciplinae nemini secundus -- ingenii maximi -- memoriae sum- mae -- spei maximae ("de disciplina inigualável, de maior capacidade,  de grande memória, a maior promessa"). [1]

Mas havia mais para Sarto que a aprendizagem pelos livros. Durante seus anos de seminário ele fez amizade com um pobre camponês acamado, compartilhando suas pequenas refeições com ele e cuidando do homem até ele morrer. Em 1858, na véspera da sua ordenação ao sacerdócio, o jovem Sarto de vinte e quatro anos de idade escreveu a seu primo: "Eu não tenho o voto de pobreza e ainda assim eu não tenho dinheiro". O dia depois de sua ordenação, ele rezou sua primeira Missa em sua cidade de Riese. Seu pai, que havia se reconciliado com a vocação religiosa de Giuseppe, não pôde assistir a primeira Missa do seu filho. Ele havia morrido vários anos antes, no dia que sua esposa deu à luz seu último filho.

A piedade e a autonegação vivida por sua família ficou com o padre Sarto pelo resto de sua vida. Como padre assistente em Tombolo ele disciplinou-se para ter apenas quatro horas de sono por noite a fim de estudar as Escrituras, o Direito Canônico e os Padres da Igreja. Ele esvaziava-se para servir seus paroquianos, às vezes dando suas próprias refeições para os necessitados. "Ele mantinha apenas o que absolutamente precisaria ter para vestir-se", observou um biógrafo. "Ele comia apenas o que precisava para se manter vivo; o restante ele dava aos pobres." [2]

"Tudo depende do meu rendimento", ele ria, "o que equivale a seis liras venezianas por dia". Sua generosidade superava tanto sua renda que ele disse a seu primo, "Depois de sete anos no sacerdócio estou com uma dívida de pouco menos que mil liras”. [3]

Sua primeira tarefa definiu a marca das coisas por vir. "Ele é tão zeloso", comentou Dom Constantini, o sacerdote mais velho de Tombolo, "tão cheio de bom senso e de outros dons preciosos que posso aprender muito com ele" [4]. Ele previu a mitra de bispo para o padre Sarto.

O que Dom Constantini notou foram as habilidades do futuro Papa Pio X brilhando como raios de luz em todas as direções. Ele trabalhava a cada minuto, continuamente esquecendo-se de si mesmo a serviço dos outros. Como administrador ele foi organizado, prático e eficiente, equilibrando as contas ao último centavo para a aquisição de livros. Ele montava aulas de catecismo, ensaiava canto gregoriano e passava longas horas no confessionário. Ele dormia pouco à noite, a fim de estudar, meditar e rezar. No entanto, ele era sempre calmo e agradável e nunca parecia desgastado. Suas habilidades eram diversas e perfeitas. Em uma idade jovem, Sarto já havia feito de si mesmo um instrumento afinado, que ele colocou sob a vontade de seu Criador.

Subjacente a todos os seus talentos havia o que hoje é chamado de "falta de autoestima"; isto é, sua humildade. "Eu sou apenas um pobre padre do campo", ele diria para desviar elogios. Sua humildade era muitas vezes confundida por promoções, mas logo recuperada. Quando nomeado Patriarca de Veneza, Sarto ainda insistiria: "Eu sou apenas um pobre Cardeal do campo". Mais tarde Merry del Val observaria:

"Humildade verdadeiramente profunda e indefectível era, eu considero, a característica proeminente do Santo Padre. Pareceu-me ser tão inteiramente a característica marcante de todo o seu temperamento como sendo nele uma segunda natureza. Custou-lhe nenhum esforço para ser humilde porque ele tinha uma concepção humilde de si mesmo e a convicção arraigada de que nós devemos todos os nossos poderes apenas a Deus, tornou mais fácil para ele admirar os dons que ele discernia nos outros do que descobrir qualquer um deles em si mesmo..."

"Ele me dava a impressão de que na sua vida privada foi necessário um ato definido de sua parte e quase um esforço afirmativo para perceber que ele era o Sumo Pontífice, dotado de todas as prerrogativas do grande ofício. Habitualmente, ele parecia considerar-se o mesmo humilde padre de anos passados, ou um dos muitos bispos, sem a pretensão de uma distinção especial. E, no entanto, no exercício da soberania e liderança, ninguém poderia tê-lo ultrapassado na imponência de seu comportamento ou no vigor de seu comando.[5]

O espelho de Giuseppe Sarto continha um reflexo do Todo-Poderoso. Apesar de todas as suas promoções e todos os seus talentos, ele manteve sua pobreza: não apenas a pobreza material, mas algo ainda mais valioso: a pobreza (humildade) espiritual. 

Bispo e Cardeal 

Ele havia sido padre por vinte e cinco anos quando recebeu um despacho Pontifical nomeando-o como Bispo da Diocese de Mântua. O padre Sarto cobriu o rosto com as mãos e chorou. Então ele fez a tentativa de convencer a todos que o despacho foi um erro e de como ele era totalmente incapaz de tal responsabilidade. Ele mesmo escreveu ao Papa Leão XIII, que parece ter ignorado a carta. Quando todas as vias de recurso tinham sido exauridas, o novo bispo desistiu, riu e disse: "Realmente, meu Senhor, esta é a última gota!" [6] 

Em sua primeira carta pastoral, Dom Sarto prometeu: 

"Para o bem das almas não pouparei nenhum esforço cuidando, nem fadiga, e nada estará mais perto do meu coração que vossa salvação. Alguns, talvez, irão se surpreender em que me baseio para fazer tais promessas. É a esperança, emblema do qual, a âncora, eu havia exibido no meu brasão episcopal; como a Escritura diz (Hb. 6, 19), a esperança é âncora segura e firme da alma; a esperança é a única companhia da minha vida, o maior apoio na incerteza, o maior poder em situações de fraqueza.

"A esperança, sim; mas não a esperança humana, que se imagina ser a fonte da maior felicidade, mesmo no meio da maior desgraça, mas a esperança de Cristo, que culmina nas promessas celestiais e pode fortalecer o homem mais fraco com a grandeza da alma e a ajuda de Deus... Eu sei que, para a salvação das minhas ovelhas, terei de lutar as batalhas, encarar os perigos, aceitar insultos, sofrer tempestades, lutar contra a praga que está atacando a moral, mas meu rebanho... o meu rebanho sempre me encontrará gentil, amável e cheio de caridade. [7] 

O Bispo Sarto foi tão bom quanto sua palavra. Quando seus recursos se esgotaram por sua generosidade para com os pobres “não era incomum ele penhorar seu anel episcopal" [8]. Os pobres eram seus "queridos amigos", seus "favoritos". Durante a liturgia na Quinta-feira Santa, Dom Sarto ajoelharia e lavaria os pés de um grupo de homens pobres. Umas notas do biógrafo: 

"Os mantuanos eram unânimes em afirmar que a caridade para com os pobres era a nota característica do Episcopado do Mons. Sarto. Seu lema era 'Pouco para si e muito para os pobres’, e este ele carregava na prática com uma generosidade inesgotável que não excluía ninguém, nem mesmo seus próprios adversários ou os inimigos da Igreja...” [9] 

Como Alcibiade Moneta, um mantuano socialista que publicou panfletos anônimos contendo libelos (acusações processuais) viciosos do Bispo Sarto. Sua identidade se tornou conhecida por Sarto, que foi instado a julgar. Em vez disso, ele orou por Moneta, cuja fortuna caiu. Falido e assediado pelos credores, Moneta apareceu sem recurso quando recebeu assistência financeira anônima que removeu suas dívidas. Ele nunca descobriu que seu salvador foi o Bispo Sarto. [10]

Sarto reformou o seminário mantuano e melhorou os programas catequéticos diocesanos. Não satisfeito, ele começou uma segunda visita pastoral para examinar a instrução religiosa nas suas paróquias. Ele declarou: "Eu não nego que isso será para mim e para vocês um trabalho cansativo, mas reflitam que nós não entramos no sacerdócio para buscar uma vida de conforto. Devemos trabalhar! Este é o nosso dever. Ser obrigado a trabalhar constantemente e ser um padre são a mesma coisa". Ele lembrou São Carlo Borromeo, quem, quando contou que sua saúde iria falhar devido ao excesso de trabalho, respondeu: "Que uso terá minha saúde se eu não trabalhar". [11] 

Durante o pontificado do Papa Leão, o catolicismo liberal fez incursões na Igreja, fazendo com que o Bispo Sarto alertasse seus padres:

"Nenhum tipo é mais perigoso que esse e para sermos persuadidos disso, é suficiente considerar a obstinação com a qual os chamados 'católicos liberais’ se agarram à sua falsa doutrina, tentando atrair a própria Igreja em sua maneira de pensar. Os sacerdotes devem vigiar contra esta hipocrisia que tenta entrar no rebanho de Cristo pregando Caridade e Prudência, como se fosse Caridade deixar o lobo rasgar as ovelhas em pedaços ou Virtude praticar aquela prudência da carne reprovada por Deus... Os sacerdotes devem vigiar, pois a fé está ameaçada, menos pela negação aberta do que pela sutileza e falsidade desses pérfidos católicos liberais, que, parando à beira do erro condenado, encontram sua força na aparência de uma pura doutrina."

"Que os sacerdotes tomem cuidado para não aceitarem quaisquer ideias oriundas dos católicos liberais que, sob a máscara do bem, pretendem conciliar Justiça com Iniquidade. Os católicos liberais são lobos em pele de cordeiro. O sacerdote deve revelar ao povo seus planos pérfidos, seus planos iníquos. Vocês serão chamados de papista, clerical, retrógrado, intolerante, mas não prestem atenção à zombaria e escárnio dos ímpios. Tenham coragem; vocês nunca devem ceder, nem há qualquer necessidade de ceder. Vocês devem ir para o ataque de todo o coração, não em segredo, mas em público, não a portas fechadas, mas a céu aberto, na vista de todos." [12]

O próprio Sarto deu o exemplo quando confrontou funcionários mantuanos sobre um costume em que se comemorava o aniversário do rei Umberto. Para marcar a ocasião, funcionários iriam visitar em procissão ao som de trombetas, primeiro a Catedral de Mântua e, em seguida, a Sinagoga. Depois de convidar os funcionários para a visita, o Bispo Sarto disse às autoridades: "Deve ser a Catedral ou a Sinagoga, o Bispo ou o rabino”. O Presidente do Conselho de Mântua, um duro e velho maçom chamado Signore Crispi, retrucou: "Nem na Catedral nem na Sinagoga”. Assim foi removido a percepção de igualdade entre Igreja e Sinagoga. Isto ilustra a diplomacia de Sarto, que ele resumiu como: "Ser conciliador, mas sem sombra de fraqueza”.

A principal fraqueza de Pio, se isso puder ser chamado assim, era chegar a um acordo com sucesso. Quando o Papa Leão nomeou-o cardeal de Veneza, Pio admitiu que estava "ansioso, apavorado e humilhado" pela promoção. Caracteristicamente, ele escreveu uma carta de protesto a Leão, "fazendo brotar a cada motivo concebível, na esperança de mover o Santo Padre a me dispensar da honra da púrpura romana" [13]. Somente quando foi dito que sua recusa ofenderia muito um Papa que o estimava muito, fez Sarto ceder.

Descobriu-se que o governo italiano não queria Sarto como Patriarca de Veneza e obstruiu sua nomeação por muitos meses. Como ínterim, Sarto permaneceu em Mântua atuando como Bispo e novo Cardeal [14], aceitando a vontade do Papa Leão, mas permanecendo imperturbável pela sua promoção. Quando um livre-pensador e professor mantuano estava morrendo, Sarto perguntou se poderia visitá-lo. A resposta "sim" chegou muito tarde da noite e o Cardeal andou pelas ruas escuras sozinho para ministrar à ovelha perdida o Viático e encaminhar sua alma para a eternidade. [15]

No início de uma manhã, um monsenhor veio visitar o Cardeal Sarto. O bispo ofereceu café ao convidado, mas não havia nenhuma governanta para fazê-lo. Sarto colocou um avental e juntos na cozinha fizeram o café da manhã. Mais tarde este episódio iria ser lembrado com carinho pelo monsenhor quando este se tornou o Papa Pio XI.
Outro convidado de Sarto foi seu antigo professor de seminário, Mons. Agnoletti. Certa manhã Agnoletti foi para a capela do bispo para rezar Missa e encontrado somente o Cardeal Sarto, "Quem vai servir?" Agnoletti perguntou. "Eu vou, é claro", respondeu Sarto, que cortou as objeções de Agnoletti com um sorriso e um tranquilo "O senhor não acha que um prelado na minha posição seja capaz de servir uma simples Missa baixa?". [16]


Os mantuanos estavam felizes em ter seu bispo de volta, mesmo que apenas por um tempo. Judeus mantuanos também pareciam reverenciar o Bispo Sarto. "Quando ele passava por seus locais de trabalho, eles faziam seu dever agradável de saudá-lo com grande reverência e diziam: ‘Oxalá tivéssemos tais sacerdotes’ ”[17]. Outro relato diz que as principais famílias judaicas em Mântua contribuíam para a diocese, a fim de Pio manter sua filantropia incessante. Ao longo de sua carreira eclesiástica Sarto teve relações de trabalho com (conservadores) políticos judeus. Foi um desses políticos, Leone Romanin Jacur, que interveio com sucesso em nome de Sarto para persuadir o governo italiano a ceder e permitir a entrada de Sarto em Veneza para começar o seu Cardinalato. [18]

Em seu primeiro sermão do púlpito da Catedral de São Marcos em Veneza, o Cardeal Sarto prometeu:

"É meu desejo sincero manifestar o meu amor por vós em tudo que eu empreender neste Patriarcado e meu maior consolo será o de saber que vocês retornam esse amor e perceberem que o vosso pastor não tem outra ambição que a defesa da verdade e o bem-estar do seu rebanho.

"E se acontecer de um dia eu falhar nesta promessa que agora solenemente faço, eu rezo para que Deus ao invés, deixe-me morrer. Como tremo em pensar que as almas possam ser punidas por toda a eternidade por causa da negligência do seu pastor, de que pessoas inocentes possam ser tiradas do caminho da verdade através das palavras do Texto Inspirado por nunca terem sido pregadas a eles, e que o espírito do mundo e do nosso tempo especialmente, possam ser derramados em mentes mal-instruídas por falta de uma mão firme para fiscalizar a maré. Eu tenho um dever sagrado de defender abertamente a verdade pois Deus vai me pedir para prestar contas de todas aquelas almas que se desviaram pelos caminhos da perdição; mesmo que odeiem o bispo e o pastor em mim,  seus destinos são minha responsabilidade”. [19]

Mas foram mais que palavras ardentes que fizeram de Sarto um favorito dos católicos venezianos.

"Ele ia a pé ao longo das ruas; um bolso cheio de moedas o outro com doces. Quando as crianças vinham correndo para ele, os pobres entre eles recebiam dinheiro e os mais bem vestidos, doces. Em pouco tempo os pais das crianças se reuniriam em torno dele e ele iria ouvi-los com paciência e interesse, interrompendo agora e em seguida com perguntas e conselhos. Os pobres especialmente, encontraram um ouvinte disposto a seus problemas mas todos encontraram nele um amigo pessoal e ele tratava aqueles a quem ele tinha encontrado antes como velhos amigos. Suas visitas sociais o levavam por todas as classes de pessoas, desde a nobreza aos pobres". [20] 

Ele andava pelas ruas de Veneza em uma batina preta comum, em seu caminho para vários casebres pobres ou para a lagoa onde ele iria rir e brincar com os pescadores e dar-lhes esmolas sob o pretexto de comprar peixe. Um fluxo constante de venezianos pobres e oprimidos eram admitidos em seu Palácio e diz-se que nenhum deixava o lugar de mãos vazias. Ele se tornou conhecido entre os venezianos como "o mais pobre dos pobres em Veneza”. Foi nessa época que o Cardeal Sarto disse a seu sobrinho padre, “Giovanni, quando eu morrer você não encontrará nada”. [21]

O Papado

O Papa Leão morreu em 1903, quase exatamente 10 anos depois de fazer Sarto Patriarca de Veneza. Embora Leão houvesse previsto confidencialmente em 1898 que Sarto seria seu sucessor, [22] o Patriarca de Veneza, aparentemente, nunca considerou essa possibilidade, pois os bilhetes comprados por Sarto para participar do conclave eram de ida e volta.

O Cardeal Mathieu de Paris recordou a reunião com Sarto no conclave:

"Quando eu encontrei o Patriarca de Veneza pela primeira vez no conclave, perguntei-lhe em francês se ele era um cardeal italiano; em qual consulta recebi em italiano a resposta, ‘Sinto muito, eu não falo francês’. ‘Bem, então, você nunca vai se tornar Papa!’ ' respondi em latim. No que o Cardeal Sarto graciosamente respondeu: ‘Deo gratias, que eu nunca deva me tornar Papa'."[23]

Isto pareceu verdade durante a votação inicial, que deu ao Secretário de Estado de Leão, o Cardeal Rampolla, uma vantagem inicial. Então veio a famosa intervenção do Cardeal Puzyna da Cracóvia em nome do imperador da Áustria, [24] contra a eleição de Rampolla. A tentativa de veto foi recebida com indignação pelos cardeais e a melhor chance de Rampolla para se tornar Papa ocorreu durante a votação seguinte, quando em reação ao movimento da Áustria, Rampolla recebeu ainda mais votos.

Depois disso, Rampolla caiu e Sarto se ergueu. Embora a maioria dos relatos do conclave pelos biógrafos de Pio X falem da dignidade com que Rampolla lidou com a situação, Yves Chiron observa que Rampolla também ficou determinado a bloquear a eleição de Sarto, persistindo até mesmo contra o conselho de vários cardeais do conclave, que se reuniram em particular com Rampolla para argumentar com ele. [25]

Sarto pareceu tão determinado quanto Rampolla para bloquear a sua própria eleição. À medida que os votos no conclave pendiam para o Patriarca de Veneza, ele declarava que não teria sido feito para o papado. Quando o próximo escrutínio confirmou que ele era o principal candidato para Papa, Sarto declarou novamente ser indigno e implorou a seus colegas cardeais para elegerem outro alguém Papa.

À meia-noite encontrava-se o relutante papável ajoelhado, disposto "no chão de mármore perto do altar" em uma "sombria capela silenciosa". Um certo jovem monsenhor fez uma visita discreta. Sarto estava choroso e firmemente decidido a não se tornar Papa. "Coraggio, Eminenza!" - "Coragem, Eminência, o Senhor vai ajudá-lo!" sussurrou o jovem monsenhor. Foi o primeiro encontro entre Giuseppe Sarto e Rafael Merry del Val.

Na manhã seguinte Sarto foi eleito Papa, "seus olhos (estavam) cheios de lágrimas; gotas de suor eram como pérolas em seu rosto e ele parecia a ponto de desmaiar". A ele foi perguntado o nome que iria carregar e ele respondeu: "Pius Decimus”, em honra dos "pontífices santos que carregaram este nome e daqueles que, nos últimos tempos, têm sido perseguidos por causa da Igreja". [26] Um mês depois ele escolheu o Cardeal Merry del Val como seu Secretário de Estado.

Pio X e Merry del Val foram vistos com ceticismo no início. Supunha-se que Pio havia sido eleito por ser simples e piedoso e, provavelmente, não ficaria politicamente envolvido nos assuntos da Europa como Leão o tinha. Quando a dupla passou a trabalhar, no entanto, a sabedoria convencional se foi. Uma das primeiras audiências papais de Pio foi com um grupo de diplomatas. Após a audiência, o estadista francês Emilio Olivier, escreveu:

"O novo Papa não tem a aparência majestosa de Leão XIII, mas ao invés, uma bondade irresistível e um encanto. Seus super eminentes dons da mente, a agudeza de seu intelecto, a clareza e precisão de seus pensamentos deixaram uma profunda impressão em mim. Ele é um excelente ouvinte e pode escolher de uma só vez todos os pontos importantes em um discurso. Suas respostas são curtas; em poucas palavras decisivas ele pode dar vida a uma situação. Ele possui todas as qualidades de um grande estadista; ele tem uma previsão notável do que é possível e do que não é. Na sua forma calma e corajosa ele tarda a condenar, mas uma vez que toma a sua decisão ele é inflexível. Acho que ele será visto na sua melhor forma quando as dificuldades surgirem - então ele provará a si mesmo ser um herói e um santo." [27]

As palavras foram proféticas. Pio surpreendeu a muitos com seu astuto sentido político. Ele encarou suas batalhas com cuidado e lutou duro contra as tentativas maçônicas de separar a Igreja e o Estado na França e Portugal. Merry del Val lembrava:

"O príncipe Bülow tinha imensa admiração por Pio X. O Papa surpreendeu o estadista pela lucidez com que ele compreendia cada situação e com a sua previsão e julgamento claros sobre os homens e as coisas... o estadista me disse: 'Eu conheci muitos governantes e príncipes mas raramente encontrei em qualquer um deles um claro e abrangente conhecimento da natureza humana como em Sua Santidade'."

A resposta de Pio para tal elogio pode ser imaginada: "Eu sou apenas um padre camponês", disse o Papa, "tendo apenas um ponto de vista - o crucifixo".[28]


Foi este ponto de vista que levou Pio a condenar o modernismo em duas encíclicas, ‘Lamentabili Sane’ e ‘Pascendi Dominici Gregis’, que expuseram as sutilezas astutas e culturais do pensamento modernista e as falhas humanas (curiosidade e orgulho) que continuam a fazer o modernismo atraente para certos intelectuais. Pelo menos um modernista teve a honestidade de admitir que a ‘Pascendi’ tinha acertado o alvo. Chamando o autor da ‘Pascendi’ de um "sutil teólogo escolástico extraordinariamente familiarizado com o assunto", o jesuíta inglês George Tyrrell declarou:

“Nenhum modernista deve se surpreender com esta encíclica, embora  possa maravilhar-se com a coragem e simplicidade desacostumadas com as quais, deixando de lado a diplomacia e os equívocos habituais, apresenta-se sem medo diante dos olhos de um mundo espantado, todas as consequências lógicas práticas, bem como especulativas, da teologia escolástica..."[29]


Perdido no matiz da antiga perseguição de Pio X ao modernismo estava suas admoestações aos caçadores de modernistas a procederem com caridade e o seu conselho ao bispo da diocese a qual pertencia o modernista excomungado Alfred Loisy: "Você será bispo do Padre Loisy. Se você tiver a oportunidade, trate-o gentilmente; e se ele der um passo em direção a você, dê dois em direção a ele”. [30]

Pai dos Pobres

O lema do pontificado de Pio, ‘Instaurare Omnia in Christo’ - Restaurar todas as coisas em Cristo - foi aplicado em primeiro lugar a si mesmo. "De suas falhas nos é dito só isso, que em sua juventude ele era de um temperamento explosivo que facilmente alterava-se para  raiva", escreveu um apoiador da causa de canonização de Pio X. "Se isso for verdade, então ele deve ter aprendido a manter-se no controle completo, pois ele era extraordinariamente gentil e paciente..." [31]

Um biógrafo escreve:

"Muitas testemunhas observaram que sua vida era uma luta constante a fim de obter completo autodomínio e não há mortificação física que poderia ser maior que essa. Ele não nasceu com um grande e generoso coração. Isto foi resultado de oração e autonegação. Por natureza, ele tinha um temperamento ardente, mas sua maravilhosa força de vontade converteu-o em um dos mais mansos dos homens. Um de seus secretários particulares perguntou-lhe como ele era capaz de controlar a si mesmo em face de tais graves perigos e dificuldades. ‘Somente com o autodomínio que é adquirido com anos de prática’, veio a simples resposta". [32]


Um político francês observou: "Ele é um homem de personalidade magnética e aparência esplêndida, com uma face aberta a partir da qual, decisão e firmeza resplandecem, mas, por outro lado, a suavidade de seus olhos tempera toda a severidade. Qualquer manifestação de dignidade é contrária à sua natureza mas não há nada de servil nele; suas maneiras são perfeitas; são as maneiras de alguém que é completamente senhor de si mesmo". [33]

De acordo com Merry del Val:

"Eu nunca notei nele um movimento desgovernado, nem mesmo nas coisas que lhe causava maior dor interna. Mesmo quando ele era obrigado a repreender, ele sempre permanecia completamente senhor de si mesmo e expressava sua tristeza e descontentamento com tranquilidade, brandura e cuidado paternal. Ele manifestava raiva apenas quando os direitos da Igreja estavam em perigo ou Deus era blasfemado." [34]

No entanto ele sofreu. Sua tristeza em relação à Primeira Guerra Mundial o matou, e antes disso, ele conheceu a tristeza e a solidão. Quando isto o perfurava excessivamente ele sussurrava as palavras de Isaias: "De gentibus non est vir mecum - E dos gentios ninguém me auxiliou". [35]
Na noite anterior ele havia condenado o governo maçônico francês por separar o Estado da Igreja; ele rezou prostrado por horas na Basílica de São Pedro diante do túmulo do primeiro Papa. Mais tarde ele disse: "Ninguém pode imaginar o quanto eu sofri e rezei, mas o Senhor me fortaleceu e me iluminou”.
[36]


Quando o governo maçônico português separou o Estado da Igreja, uma delegação de católicos portugueses veio a Roma. Pio perguntou como ele poderia ajudar e foi dito que era necessário $ 100.000. Ele disse que não tinha dinheiro, mas pediu que a delegação voltasse no dia seguinte. No dia seguinte um estranho fez uma breve visita ao Santo Padre. Pio deixou a reunião sorrindo. O estranho tinha lhe dado a soma exata peticionada pela delegação portuguesa. "Ele entra por uma porta e sai pela outra", riu o Papa. [37]

Merry del Val disse que Pio "nunca parou para pechinchar sobre o que ele deu na caridade e ele deu incessantemente". Observou-se também que:

"Como Papa, ele persistiu em se recusar a aprovar qualquer gasto que parecesse estar destinado ao seu conforto pessoal; sua única posse pessoal era a sua casa nativa em Riese, que ele se recusou a descartar pela simples razão de querer garantir às suas irmãs... um teto sobre suas cabeças se algo lhe acontecesse. Ao longo de sua vida, aqueles que cuidaram de suas necessidades materiais reclamavam que sua caridade não tinha limites. Suas irmãs escondiam seus lençóis por medo de que os doasse. [38]

As obras de caridade de Giuseppe Sarto aumentaram quando ele se tornou Papa. Quando um grande terremoto atingiu a Itália em 1909, Pio levantou 7 milhões de francos para ajudar as vítimas e reconstruir igrejas e escolas. Ele teve especial cuidado para que as casas para órfãos fossem igualmente reconstruídas. Ele ficou conhecido como o "Pai dos Pobres", um título que se tornou amplificado por sua condescendência paternal na redução da idade para as crianças receberem a Primeira Comunhão.

Um eclesiástico e amigo lembrava:

"Desde 16 de setembro de 1885 até sua morte, eu estive constantemente com ele e posso testemunhar que ele sempre foi dedicado ao dever, trabalho e auto-sacrifício, sem perder nada de sua tranquilidade e doçura, sem mostrar o menor sinal de cansaço ou comportando-se como se ele próprio fosse de nenhuma importância”. [39]

Pouco é dito das curas milagrosas que ele realizou enquanto vivo, mas todos atestam uma aura do sobrenatural que irradiava de Pio X. Um membro da Academia Francesa testemunhou: "Não era possível entrar em contato com Pio X sem ser profundamente movido por sua afabilidade e generosidade. Peregrinos de todas as partes do mundo comentavam sobre sua bondade. Em audiências públicas, ele aparecia com toda a majestade do Vigário de Cristo, enquanto seus olhos pareciam olhar para a eternidade. [40]

Um embaixador argentino disse: "A primeira impressão que o servo de Deus fez em mim foi que ali estava um homem de quem a piedade emanava. Não podia conter minhas lágrimas - uma sensação que eu nunca havia experimentado antes. De todos os Papas que tive a honra de conhecer, nenhum causou uma impressão mais profunda em mim que Pio X”. [41]

Cardinal Baudrillart disse de Pio X: "Sua aparência, suas palavras e sua personalidade manifestava sua generosidade, firmeza e fé: a generosidade revelou o homem; a firmeza, o líder; a fé, o sacerdote e o Papa, o homem de Deus. Um homem mais espiritual (que Pio X) seria difícil de imaginar”.

Pio X morreu em 20 de agosto de 1914 de dor, diz-se, ao longo da iminente guerra mundial. Do seu lado da cama ele disse ao seu padre confessor: "Eu ofereço minha vida a Deus pelas vidas do Seu e meus filhos”.[42] O médico disse que nunca tinha visto alguém passar com tanta serenidade. Pio recusou-se a permitir que seu corpo fosse embalsamado e ordenou um enterro em uma tumba simples e barata. No vigésimo dia de cada mês seguinte, Merry del Val rezou uma Missa privada, perto da sepultura de seu Papa e companheiro de armas.

A generosidade de Pio aos pobres continuou após sua morte nas formas de curas e milagres. Outro milagre foi observado quando seu corpo foi encontrado incorrupto durante o processo de beatificação. Isso ocorreu em 1944 enquanto a Segunda Guerra Mundial estava sendo travada. Observadores notaram "uma expressão tranquila" no rosto de Pio X. "Em 27 de junho de 1944, o corpo de Pio X, bem preservado e mostrando grande flexibilidade dos membros, foi vestido de novas vestimentas, o presente de Sua Santidade, Pio XII”. [43]

* * *

"Pai dos Pobres" é um título do Espírito Santo. Ele também é um título apropriado para um santo que foi um pai terreno para os pobres e que foi preenchido com os dons e frutos do Espírito Santo. "Os frutos do Espírito”, São Paulo disse aos Gálatas, "são a caridade, alegria, paz, paciência, benignidade, bondade, longanimidade, brandura, fé, modéstia, continência e castidade". Papa São Pio X passou sua vida exibindo e distribuindo os frutos do Espírito Santo. Devemos acreditar que isso cessou agora que ele goza da visão beatífica? São Giuseppe Sarto, Pai dos pobres, rogai pelos pobres. Rogai por nós.

Republicado da edição de agosto de 2003 do Catholic Family News 

Notas:
1. Padre Hieronymo Dal-Gal, Pio X, A história de Vida do Beato, Dublin, M. H. Gill And Son Ltd., 1954, p. 8.
2. Um Simpósio Sobre a Vida e Obra do Papa Pio X, Preparado Sob a Direção da Comissão Episcopal da Confraria da Doutrina Cristã, Publicada pela Confraria da Doutrina Cristã, Washington, DC, 1946, p. 275.
3. Ibid., p. 4.
4. Giordani Tobin, Pio X, Bruce Publishing Company, 1954, p. 17.
5. Cardeal Merry del Val, Memórias do Papa Pio X, Londres, Burns, Oates e Washbourne, 1939, pp. 62-63.
6. Rene Bazin, Pio X, St. Louis, B. Herder Book Company, p. 68.
7. Como citado em Yves Chiron, São Pio X, Restaurador da Igreja, Angelus Press, 2002, p. 54.
8. Simpósio, op. cit., p. 275.
9. Dal Gal, op. cit., pp. 92-93.
10. Bazin, op. cit., pp. 92-93. Pio encomendou que uma senhora católica idosa entregasse o montante à esposa de Moneta, instruindo-a: "Acima de tudo, não os deixe saber que foi eu quem lhe enviou. Se eles forem muito insistentes, você pode dizer que a pessoa que recolheu este montante é a mais compassiva de todas as mulheres - Nossa Senhora do Perpétuo Socorro".
11. Dal Gal, op. cit., pp. 67-68.
12. Ibid., pp. 73-74.
13. Ibid., pp. 94-95.
14. Quando houve um atraso na ida de Sarto para Veneza, Leão o fez Cardeal antes da mudança, pontuando que a promoção de Sarto não se devia apenas a uma transferência para Veneza.
15. Don Benedetto Pierami, A vida do Servo de Deus, Pio X, Turim, Casa Editrice Marietti, 1928, p. 66.
16. Dal Gal, op. cit., pp. 100-101.
17. Pierami, op. cit., p. 65.
18. Andrew M. Canepa, "Pio X e os Judeus: Uma Reavaliação", publicado no ‘Journal Church History’. Agradeço a Matt Anger por fornecer-me este artigo.
19. Dal Gal, op. cit., p. 107. Quisera Deus que nossos prelados fizessem tal promessa.
20. Simpósio Sobre a Vida e Obra de Pio X, op. cit., pp. 276-277.
21. Dal Gal, op. cit., p. 127.
22. Chiron, op. cit., p. 115, fn 4.
23. Simpósio Sobre a Vida e Obra de Pio X, op. cit., p. 15.
24. A Áustria havia dividido uma parte da Polônia que incluía a Cracóvia.
25. Chiron, op. cit., p. 126. Eu estou propositadamente ignorando um outro ângulo sobre a intervenção austríaca, isto é, que foi devido ao Cardeal Rampolla ser um maçom. Isto é tratado exaustivamente em outro lugar nesta edição do CFN.
26. Ibid., P. 127.
27. Dal Gal, op. cit., p. 143.
28. Ibid., P. 187.
29. Bazin, op. cit., pp. 245-246.
30. Chiron, op. cit., p. 238.
31. Simpósio, op. cit., Ensaio pelo Rev. John S. Mix intitulado A Causa de Pio X.
32. Dal Gal, op. cit., p. 185.
33. Ibid., P. 129.
34. Cardeal Merry del Val, op. cit.
35. Isaías 63, 3.
36. Dal Gal, op. cit., pp. 205-206.
37. Ibid., P. 204.
38. Simpósio, op. cit., p. 275.
39. Bazin, op. Cit., P. 265.
40. Dal Gal, op. cit., p. 180.
41. Ibid., P. 180.
42. Simpósio, op. cit., p. 40.
43. Ibid., P. 283.
 

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Notas do Traditio:

- Os destaques em negrito são deste blog. 
- Pede-se orações em favor de John Vennari, editor do Catholic Family News de onde foi traduzido este artigo, que foi diagnosticado no último mês de agosto com um grave câncer no cólon.
- O Catholic Family News é um jornal católico tradicional publicado na região de Nova York nos Estados Unidos e na região de Ontário no Canadá, além de ter sua versão online através do blog. É ligado ao Fatima Center que surgiu a partir da revista Fatima Crusader, lançada na década de 70 pelo Padre Nicholas Gruner (*1942 - 2015 ) com o intuito de promover a oração do Rosário e a mensagem de Fátima, além do pedido de consagração da Rússia de acordo com a mesma mensagem da Santíssima Virgem em Fátima. Tanto o CFN bem como o Fatima Center não tem oficialmente ligação com nenhum grupo da Igreja mas seus membros mantém amizade e estão sempre em contato com o distrito americano da FSSPX. Quando do funeral do Pe. Gruner o Superior da Fraternidade São Pio X, S. Ex.ª Revma., o Bispo Bernard Fellay ofereceu a Missa de réquiem.
 

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